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Entrevistas

Ana Sofia Antunes: Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência
Esta edição tem como tema central a acessibilidade. A Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, falou-nos sobre o que já foi feito em Portugal nesta matéria e o que está a ser planeado. É uma entrevista do presente com o olhar no futuro.
14 Abril 2021
Ana Sofia Antunes nasceu em Lisboa em 1981, mas cresceu em Vale de Milhaços, Corroios. Atualmente, vive em Vila Franca de Xira.
Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foi, já depois de ter feito estágio, entrado na Ordem dos Advogados e exercido um ano de advocacia nas áreas do Direito administrativo, urbanístico e imobiliário, que recebeu o convite para trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa. Na autarquia foi assessora jurídica do vereador da Mobilidade, entre 2007 e 2013.
Em 2010, ficou igualmente responsável pelos trabalhos do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa e coordenou a respetiva Comissão de Acompanhamento. Três anos depois, transitou para a Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), onde foi provedora do cliente.
Integrou a ACAPO, Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, tendo ocupado o cargo de presidente da Direção Nacional da Associação entre 2013 e 2015.
Foi candidata a deputada às eleições legislativas de 2015 e 2019, eleita nesta última, pelo círculo de Lisboa.
A nível autárquico, é deputada municipal no Concelho de Arganil, desde 2017.
Exerceu o cargo de Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência no XXI Governo Constitucional.
Em 2009, Portugal ratificou a convenção dos direitos da pessoa com deficiência da ONU e, desde aí, temos evoluído nesta matéria. Onde é que estávamos nessa época e onde é que nos encontramos?
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é um tratado internacional fundamental para a implementação dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência, aprovado pela Organização das Nações Unidas em 2006 e ratificado por Portugal em 2009.
É um tratado vinculativo e obriga os Estados parte a (re)definir normativos e criar medidas de política consentâneas com os direitos das pessoas com deficiência, assegurando a sua integridade e garantindo a sua autonomia e, mais do que isso, a sua autodeterminação.
O grande desafio para os estados-partes da Convenção está em abandonar em definitivo uma visão secundarizante da pessoa com deficiência, que coloca sob sua inteira responsabilidade o percurso a cumprir rumo à sua integração numa sociedade dita normal, para adotar objetivamente um paradigma de inclusão, em que cada cidadão com deficiência é sujeito de direito, podendo e devendo exigir a essa mesma sociedade que se adapte e evolua por forma a melhor o incluir.
Deste modo, as alterações ou propostas de normativos ou a definição de medidas de política pública assentam nos paradigmas propostos pela Convenção. Deixo como exemplo a profunda alteração introduzida pelo novo Regime do Maior Acompanhado, a definição de um Modelo de Apoio à Vida Independente, a criação da Prestação Social para a Inclusão (que, em Portugal, é a única que tem uma componente de cidadania) ou o aprofundamento do sistema de Educação Inclusiva, no qual Portugal tem um dos melhores desempenhos do mundo. Assim, as grandes diferenças, do antes para o após a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assentam nas necessárias transformações inerentes à mudança de paradigmas e aprofundamento da inclusão e cidadania das pessoas com deficiência. A ratificação da Convenção alarga as obrigações, responsabilidades e necessidades de prestação de contas a nível nacional e internacional.
Vivemos numa sociedade cada vez mais digital e, recentemente, foi apresentado o novo portal acessibilidade.gov.pt. Quer falar-nos sobre a sua importância?
A sociedade atual é designada como a mais informada até à data. A liberalização da informação foi, sem dúvida, potenciada pela web que se evidenciou, desde logo, como charneira na alteração de comportamentos. Creio que essa transformação social era inevitável, faz parte do nosso percurso coletivo e evolutivo, todavia abriu espaço que proporcionou a instalação de uma dicotomia acentuada. De um lado, temos os ganhos que se evidenciam, há uma partilha efetiva, a informação está à disposição de todos e isso permite grandes avanços a todos os níveis, sobretudo na prestação de serviços e nos planos científico, formativo, artístico e político. Do outro lado, encontramos perigos, particularmente na exposição que parece comprometer a privacidade do indivíduo, e vamos despertando quase que diariamente para novos riscos que emergem no ambiente digital. A velocidade a que a evolução dos conteúdos digitais está a acontecer constituir-se-á, a breve trecho, como uma séria dificuldade para as pessoas com deficiência, pois caso as questões da acessibilidade digital não comecem a ser tidas em conta desde o momento da conceção de novas ferramentas e softwares digitais, dificilmente estes cidadãos conseguirão acompanhar este processo, em condições de equidade, conforme lhes é devido.
Na minha opinião, a criação de um portal como o acessibilidade.gov.pt faz toda a diferença nos nossos dias.
As diferenças positivas começam no facto de ser gerido pela entidade competente nas matérias que trata. Outro aspeto decisivo é o de nele se encontrar reunido um conjunto de informações essenciais sobre o tema que deu origem à sua construção. O portal disponibiliza, não só, conteúdos legais e orientações técnicas basilares, como assegura a divulgação de notícias nacionais e internacionais, dando nota do que está a ser feito na área. A título de exemplo, no contexto da partilha de informações sobre a atualidade, neste momento o portal está a divulgar a abertura do prazo para inscrições na primeira edição do curso «Acessibilidade dos Conteúdos Digitais: da Declaração de Acessibilidade e Usabilidade ao Selo de Excelência». Esta é uma informação de grande interesse e que, de outra forma, chegaria a um menor número de pessoas interessadas no tema.
A este propósito, é importante referir que a criação do Selo de Acessibilidade e Usabilidade dos sites foi uma medida Simplex + 2017, que se alinhou com esta dinâmica de aproximação da Administração Pública aos cidadãos e cidadãs e de simplificação das relações.
Por último, entre as valências do portal, há uma que considero decisiva, o apoio técnico e esclarecimento de dúvidas. Esse serviço, que é prestado pela equipa técnica da Agência para a Modernização Administrativa, E.P. (AMA) responsável pela área das acessibilidades digitais, é um recurso valioso que, não tenho dúvidas, muito contribuirá para a evolução da acessibilidade digital em Portugal.
O que tem sido feito ao nível da acessibilidade digital está a ser suficiente para não deixar ninguém para trás?
Ao falar da acessibilidade no domínio digital é essencial ter presente que, ainda que Portugal integre o pequeno conjunto de países que há sensivelmente 20 anos reconheceram a importância da acessibilidade na web, há ainda um longo caminho por percorrer. Não nos é possível, por enquanto, afirmar que ninguém fica para trás. Podemos, sim, assumir que estamos na linha da frente quando nos comparamos com outros países.
À escala global, somos o quarto país, primeiro no espaço europeu, a criar legislação específica sobre esta vertente da acessibilidade. Relembro a Resolução do Conselho de Ministros nº 97/99, de 26 de outubro, a qual foi muito importante, porque estabeleceu os primeiros requisitos mínimos de acessibilidade digital para sítios da Administração Pública, apesar da ausência de menção às WCAG 1.0. Esse foi o pilar estrutural sobre o qual assentou o processo que nos permite, hoje, estender o conceito e posicionar Portugal no topo, pela sua visão pioneira em matéria de acessibilidade digital.
O Decreto-Lei nº 83/2018, de 19 de outubro, foi um marco impulsionador no desenvolvimento deste domínio. Não obstante, verifico que perduram lacunas que entendo essencial preencher, perspetivando a conquista dos principais objetivos que gostaria de ver o nosso país atingir na área. Considero que a falta de formação e o, ainda, grande desconhecimento nesta matéria são os principais obstáculos que precisamos de, rapidamente, ultrapassar.
O Governo tem feito um enorme esforço no encalço da mudança do paradigma, no âmbito da acessibilidade digital, designadamente a atualização que fizemos à legislação que nos permite, hoje, falar do tema como sendo um dever das entidades. Conseguimos, finalmente, substituir o conceito «recomendação» por «obrigatoriedade de cumprimento». Este foi um aparentemente pequeno passo resolutivo, mas que na realidade é grande.
São ainda poucos os técnicos da área informática e do web design com experiência. É ainda mais reduzida a quantidade de dirigentes conscientes de que lhes compete dotarem os seus serviços de recursos digitais acessíveis.
Estou convicta de que as dificuldades poderão ser superadas com a estruturação de recursos técnicos e humanos que apoiem e orientem os vários agentes. Não obstante os avanços que temos feito ao nível da acessibilidade digital para cidadãos cegos, com baixa visão ou surdos, as dificuldades adensam-se no quadro do défice de motricidade fina e de incapacidades cognitivas. Conquanto, as normas do WCAG 2.1 integrem requisitos que visam salvaguardar essas especificidades, nomeadamente no tocante à escrita fácil e de experiência de navegação face a constrangimentos de motricidade fina, as respostas e conhecimento aplicados são minorados e não refletem o cumprimento desses mesmos requisitos.
O Balcão da Inclusão é um local de atendimento com mediação especializada e acessível. É um serviço para continuar ou haverá uma altura em que já não será necessário?
O acesso à informação é fundamental para o efetivo exercício da cidadania. A necessidade de um atendimento especializado e orientado para os direitos das pessoas com deficiência, como o Balcão da Inclusão, pode ser avaliada pelo sucesso do mesmo, que ser medido pelo número de atendimentos e pelo constante crescimento da rede. Desde a sua criação, em 2016, os 19 balcões da rede central e os, atuais, 88 da rede municipal já realizaram cerca de 73 000 atendimentos.
O Balcão da Inclusão tem uma peculiaridade que, em minha opinião, é o fator que ditará a sua manutenção no tempo: é uma rede territorializada. É ajustada à diversidade do território, dos locais, das populações e recursos.
Esta dimensão perde-se um pouco em sistemas de atendimento ou de disponibilidade de informação mais centralizados ou padronizados. É igualmente essencial compreender que a população é cada vez mais envelhecida e também que há ainda uma significativa iliteracia, inclusive digital, ou um número significativo de pessoas ou famílias que não têm acesso a meios digitais.
Entendo, portanto, que o Balcão da Inclusão veio para ficar durante muitos anos e tenho muito orgulho em afirmar que esta rede tão necessária e inovadora foi a primeira medida Simplex + 2016 da área da inclusão das pessoas com deficiência.
O ano 2020 foi marcante em termos de acessibilidade digital, pela entrada em vigor do Decreto-lei nº 83/2018, mas 2022 marcará uma nova era, com a aprovação do Acessibility Act. Que desafios vão ser colocados ao nosso País?
O Decreto-Lei n.º 83/2018, de 19 de outubro, foi uma enorme conquista que lográmos alcançar e muitos trabalharam empenhadamente para que a sua aprovação fosse possível. Estamos perante um instrumento que contribuirá definitivamente para a acessibilidade nos sites, aplicações e serviços da Administração Pública. Todavia, a sua importância será ainda potenciada pelo trabalho a desenvolver ao nível da transposição da Diretiva Europeia nº 2019/882, de 17 de abril, o Accessibility Act, na medida em que este se aplicará igualmente a muitas e diversas soluções existentes no setor privado e que, apesar de alguma forma relacionadas com a web, são bastante mais abrangentes. Portugal já tem feito algum desse trabalho de base, designadamente com as alterações que têm sido introduzidas à lei das comunicações eletrónicas, mas o efeito de escala decorrente do facto de estas normas terem incidência europeia fará, sem dúvida, com que a regulamentação nacional se tenha de adequar aos mais recentes padrões tecnológicos.
Nesta medida, os desafios serão enormes, por requerem o cruzamento dos diplomas que se encontram em vigor, com os indicadores uniformizados dentro do espaço Europeu. As exigências serão comuns em todos os Estados Membros, e isso é uma conquista que, certamente, catapultará a acessibilidade para um nível muito superior.
Por outro lado, requer um enorme investimento no ajustamento do modus operandi e na adequação de medidas e diplomas legais que nem sempre se tocam, mas que acabam por ter algum tipo de conexão.
Não vai ser fácil, todavia, o resultado valerá o esforço e empenho.
Durante a anterior legislatura, foi criada a Prestação Social para a Inclusão, que veio substituir outras e transformá-las numa única prestação. De que forma é que essa uniformização ao nível da Segurança Social melhorou a proteção das pessoas com deficiência?
A Prestação Social para a Inclusão, usualmente designada por PSI, é o resultado de uma ampla reformulação das prestações sociais para as pessoas com deficiência e de uma ambição antiga que era construir uma prestação única para este público. Anteriormente, existia um elenco vasto de subsídios e apoios, sendo que alguns eram acumuláveis e outros concorriam para o mesmo fim, o que tornava o quadro de proteção muito complexo. No diagnóstico realizado no início do mandato, identificámos mais de 20 combinações possíveis de benefícios, o que tornava difícil as pessoas entenderem como melhor exercer os seus direitos. Acrescia que os critérios de acesso, em especial a certificação da deficiência, não eram uniformes e eram ainda muito centrados nas situações em que não existia participação no mercado de trabalho. Desde 2017, tudo isso tem vindo a mudar de um modo muito profundo. A certificação da deficiência é, hoje, realizada de um modo único no acesso a benefícios fiscais, proteção social, educação, saúde, etc. Várias prestações foram extintas e as pessoas transferidas para a PSI, com salvaguarda de direitos. E criaram-se mecanismos de diferenciação positiva dentro da prestação, por exemplo nas situações de monoparentalidade para crianças e jovens, nas situações com graus de incapacidade mais elevados, maior ou igual a 80%, onde é aplicada o que designamos de vertente de cidadania, dispensando a condição de recursos, ou na definição de limites de acumulação de rendimentos que são mais elevados para os rendimentos de trabalho, nas situações das pessoas com grau de incapacidade inferior a 80%. A PSI tem uma lógica de ciclo de vida e conta atualmente com duas componentes, a base e o complemento de combate à pobreza, estando prevista para 2021 a introdução da terceira e última componente, a majoração, que visará compensar despesas específicas das pessoas com deficiência. Assim, podemos dizer que houve uma verdadeira mudança de paradigma, uma grande simplificação, com o alargamento e aprofundamento da proteção, que agora abrange praticamente o dobro das pessoas e atinge níveis sem paralelo noutras prestações não contributivas.
A igualdade entre todos os cidadãos deve ser umas das premissas em que se baseia um Estado de Direito. Como é que se garante essa igualdade para os cidadãos com deficiência?
Na minha opinião, a efetivação da igualdade passa pela promoção e garantia do pleno acesso e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais no campo político, económico, social, cultural, e civil, por todas as pessoas, onde se incluem, é claro, todas as pessoas com deficiência.
A igualdade das pessoas com deficiência só poderá ser atingida se lhes for reconhecido que a sua participação, a sua responsabilidade, a não discriminação e o empoderamento são princípios fundamentais de uma abordagem da deficiência baseada nos direitos humanos, permitindo que as pessoas com deficiência atinjam e mantenham a máxima independência, total capacidade física, mental, social e vocacional e plena inclusão em todos os aspetos da vida.
A grande mudança de paradigma das políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência parte da visão que temos hoje da pessoa com deficiência, pela qual defendemos e acreditamos que precisamos de tirar o foco da pessoa e colocá-lo no ambiente que apresenta barreiras de acesso. O que impede as pessoas com deficiência do exercício dos direitos estabelecidos e defendidos para todos não é a sua deficiência ou incapacidade, mas as barreiras que impedem o acesso da pessoa com deficiência a ambientes comuns, uma vez que existe uma relação entre as características pessoais e o ambiente em que a pessoa se encontra, trabalha, estuda, vive. Barreiras essas que podem ser físicas, mas são também psicológicas, sociais e culturais.
Trabalhámos, todos os dias, com vista a garantir a igualdade dos cidadãos com deficiência, desenvolvendo medidas específicas para promover a sua autonomia, participação e autodeterminação.
É descrita por muitos como uma defensora da igualdade de direitos e tem dedicado a sua vida à área da inclusão. Considera-se uma mulher de causas?
Sim. Sou uma mulher, uma cidadã de causas. Penso que sou, na minha génese, uma ativista. Sempre fui curiosa, sempre quis perceber o funcionamento das coisas e ter respostas para os porquês! O meu percurso de vida fez-me resiliente e inquieta. Provavelmente, se hoje frequentasse a escola, seria classificada como hiperativa. Mas essa minha energia, procurei sempre canalizá-la para ir mais além. Nunca admiti respostas taxativas, pois considero que tudo merece ser avaliado e discutido. Toda esta minha forma de ser, acabou por, naturalmente, fazer de mim alguém inconformado com a injustiça, com a iniquidade e com a desigualdade nas oportunidades para diferentes cidadãos. Vivenciei-o desde cedo, por vezes de forma tão intensa que isso me causava sofrimento físico e psicológico. Sinto as coisas de forma muito intensa e isso foi algo que também tive de aprender a gerir. E uma das formas através das quais consegui fazer bom uso de toda a minha irrequietude e vontade de agir, foi precisamente dedicando-me às causas que considerava fundamentais, do ponto de vista da construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático, que respeita e considera de igual forma todos os seus cidadãos, independentemente das suas características. Não existem Estados perfeitos, mas certamente existem Estados que podem e fazem um caminho para se tornarem melhores, para todos os seus.
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